‘Você Não Estava Aqui’ e a realidade por trás do seu delivery na quarentena ‘Você Não Estava Aqui’ e a realidade por trás do seu delivery na quarentena

‘Você Não Estava Aqui’ e a realidade por trás do seu delivery na quarentena

Novo filme do cineasta inglês Ken Loach explora as principais mazelas causadas pela “uberização”; especialistas divergem sobre causas e efeitos do fenômeno

Matheus Mans   |  
3 de abril de 2020 10:02
- Atualizado em 8 de abril de 2020 16:56

No filme ‘Você Não Estava Aqui’, que acaba de estrear em video on demand no Brasil, o protagonista Ricky Turner vive um dilema. Por um lado, quer ficar mais tempo em casa e aproveitar a família. Por outro, precisa trabalhar. Afinal, é autônomo em uma empresa de entregas. Quanto mais tempo nas ruas levando pacotes para desconhecidos, maiores seus ganhos.

Esse dilema de Ricky Turner, passado numa Inglaterra pouco retratada nos cinemas, é a realidade de muitas pessoas. Só no Brasil, são 38,4 milhões de informais. Pessoas que, durante a atual pandemia de covid-19, amplificam as dores do protagonista. Afinal, se respeitarem a quarentena contra o novo coronavírus, não ganham dinheiro. Se trabalharem, correm riscos de saúde.

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É uma dicotomia míope, mas que acaba afetando a vida dessas pessoas. Sem direitos, elas preferem se sacrificar nas ruas para não faltar comida.

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A discussão vai além. Este fenômeno trabalhista, chamado de “uberização”, tem despertado debates. Quais são os limites da liberdade e da informalidade no mercado de trabalho? Vale a pena fazer parte do mercado informal? Quais os riscos e benefícios? Uber, iFood e a tal empresa fictícia de entregas de Ricky devem se responsabilizar pelos seus trabalhadores?

Visão de Loach

Em ‘Você Não Estava Aqui’, o cineasta Ken Loach (do também potente ‘Eu, Daniel Blake‘) deixa clara a sua opinião sobre a “uberização”. Durante todos os 100 minutos de duração do longa-metragem, não há sossego para Ricky Turner (Kris Hitchen), nem para sua família. Num único fôlego, ele mostra a maldade que há nessa cadeia de serviços, da contratação ao desemprego.

Para Turner, que estava desempregado e vendo a família ruir, este trabalho é sua última tábua de salvação. Ele rapidamente cai na história do patrão, que promete liberdade ao protagonista. Assim, é Ricky que deve escolher o veículo que vai usar, as horas diárias de trabalho, os dias de folga, as pausas que faz. “Um empreendedor dono do próprio nariz”, nas palavras do chefe.

Ken Loach critica a “uberização” em ‘Você Não Estava Aqui’ (Crédito: divulgação / Vitrine Filmes)

Mas Loach desconstrói essa visão aos poucos. Rapidamente, Turner recebe multas. Não pode levar a filha no banco de carona, nunca consegue estar presente em casa pra dar apoio à esposa, não consegue entender o que está acontecendo com o filho mais velho. Até mesmo precisa urinar dentro de uma garrafa plástica. Assim, aos poucos, ele vê sua humanidade sumir.

No entanto, assim como em ‘Eu, Daniel Blake’, Loach traz uma visão de extremos. No “mundo real”, economistas e especialistas em direito digital e trabalhista não chegam num consenso único sobre os pontos positivos e negativos de um trabalho como o de Turner. Para eles, há benefícios e malefícios que sempre precisam ser levados em conta na hora de analisar.

Pontos de vista

Wagner Roberto Ramos Garcia Junior, especialista em Direito e Economia Digital, chama a atenção para a importância desses aplicativos na economia. Aqui no Brasil, especificamente, eles surgiram bem no meio de uma crise econômica, em 2014, e ajudaram famílias a encontrar uma nova renda. No entanto, ele chama a atenção para cuidados com esse formato.

“O trabalhador é
obrigado a se
submeter a jornadas
extenuantes”

“A chegada dessas plataformas tecnológicas foi a salvação para muitas famílias. A ideia da ‘uberização’ é o cidadão ter um ‘bico’ e fazer renda extra”, explica. “Mas com a crise macroeconômica, o trabalhador é obrigado a se submeter a jornadas extenuantes para pagar todas as contas do mês sem nenhum tipo de direito trabalhista. A análise deve ser ponderada”.

Já Natalie Verndl, mestre em Economia e Atuária, chama a atenção para a independência que trabalhadores passaram a ter com a “uberização”.

“Um argumento é que este tipo de trabalho emancipa o trabalhador, gerando uma nova realidade social, fugindo do antigo ‘paternalismo’ ou Estado protetor”, explica. “Isso permite que este indivíduo cresça por meio de suas próprias condições, buscando maiores taxas de produtividade, ou, usando um termo americano, através do princípio do ‘self-made man'”.

Futuro da ‘uberização’

Agora, com a crise do coronavírus e a preocupação com os profissionais, surge uma dúvida que vai além da temática do filme de Loach: será que este formato de trabalho permanece? Ou será uma quebra de paradigmas?

Tanto Verndl quanto Wagner acreditam na continuidade desse tipo de serviço — afinal, uma vez digital, sempre digital. No entanto, levantam uma questão única: com esta atual crise, novas medidas devem ser tomadas.

“Este trabalhador
se tornou
fundamental”

“Em um ambiente de crise, este trabalhador se tornou fundamental. É o principal elo de interação do mercado, facilitando as trocas necessárias para a manutenção da economia”, afirma Natalie. “Medidas legais poderiam ser uma solução para que os aplicativos implementem medidas salutares, evitando exposição ao vírus. Alguns apps já vêm iniciando estas medidas por conta própria, mas devem ser prolongadas até mesmo após a crise”.

Ricky Turner  em um dos raros momentos de confraternização com a família (crédito: divulgação / Vitrine Filmes)

Wagner Roberto Ramos Garcia Junior, enquanto isso, defende uma maior regulação do setor, neste momento, para evitar problemas como o de agora.

“É possível a criação de melhores condições de trabalho”, diz o especialista. “Alguns juristas e economistas não são a favor da dura regulação com receio de inviabilizar os serviços tecnológicos. No entanto, a função da regulação é aprimorar os mecanismo de mercado para que haja melhores condições de competição e de trabalho. É o desafio do século XXI: aprimorar direitos sociais sem mitigar a competição e a inovação tecnológica”.

Resta saber se essas ações vão chegar à tempo de ajudar os milhares ou até milhões de “Ricky Turners” que se desdobram, neste momento, nas grandes cidades do Brasil e do no mundo – e assim, quem sabe, a realidade não copie a ficção.


Você Não Estava Aqui

De Ken Loach

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